Prezado Editor, Venho, nas páginas a seguir, relatar um pouco do projeto “Acesso” e do Seminário “Os sentidos da arte: pesquisas e práticas de acessibilidade em museus”, realizado pelo Centro de Arte e Cultura “Dragão do Mar”, em Fortaleza, no Ceará. Trata-se de um projeto de inclusão do público com deficiência ao espaço museológico. Espero … Continuar a ler A experiência do seminário “Os sentidos da arte: pesquisas e práticas de acessibilidade em museus”
undefined
Audio Description Worldwide Consortium
Áudio-descrição da logo da RBTV: Revista Brasileira de Tradução Visual. Em um fundo branco, a mão direita faz a letra t em libras. O indicador e o polegar se cruzam, os demais dedos ficam erguidos. Próximo ao indicador há, em verde, 3 ondas sonoras. Abaixo da mão, lê-se RBTV, com letras verdes e com letras Braille em preto.

A experiência do seminário “Os sentidos da arte: pesquisas e práticas de acessibilidade em museus”

Prezado Editor,

Venho, nas páginas a seguir, relatar um pouco do projeto “Acesso” e do Seminário “Os sentidos da arte: pesquisas e práticas de acessibilidade em museus”, realizado pelo Centro de Arte e Cultura “Dragão do Mar”, em Fortaleza, no Ceará.

Trata-se de um projeto de inclusão do público com deficiência ao espaço museológico.

Espero que, com este relato, possamos estimular a que outros museus venham tornar-se acessíveis a esse público e, ao divulgar nosso trabalho, que o público com deficiência, em visita a Fortaleza, venha conhecer nosso museu, usufruir de nosso serviço e opinar para que possamos, cada vez mais, prestar serviço de qualidade e inclusão, dignos do público com deficiência.

Uma visita ao museu pode provocar distintas apropriações. Para uns a experiência produz sentimentos de deleite, pertencimento e familiaridade com os bens culturais expostos. Para aqueles, historicamente excluídos do acesso, pode suscitar sentimentos de frustração, de incompetência, de incapacidade de entendimento de algo que se revela muito além da compreensão intelectual, favorecendo o distanciamento e o não retorno. Segundo Bourdieu (2006), o público oriundo das classes populares não consegue o “real acesso às obras expostas nos museus” porque não detém os meios econômicos e simbólicos que geram a capacidade de apropriação do capital cultural transmitido por essas instituições.

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, de 2008, indicam que 92% dos brasileiros nunca foram aos museus. Os que freqüentam são oriundos em sua maioria dos setores médios e altos da população, com nível de instrução elevado, demonstrando que o interesse pelos museus cresce à medida que aumenta o nível econômico, a instrução e a familiarização prolongada com a cultura de elite.

Para penetrar nos detalhes da prática cultural de visita aos museus é importante realizar continuamente pesquisas de públicos de museus de modo a conseguir apreender os fatores sociais que legitimam a distribuição desigual da frequência, trazendo dados para a discussão, a proposição e o conhecimento de usos sociais de museus e do seu potencial para promover o desenvolvimento humano e a democratização do conhecimento (KOPTCKE: 2007).

Aos profissionais de museus cabe o compromisso de não reproduzir conceitos e práticas que reforçam sentimentos de incapacidade e falta de autonomia. Como vimos, a maioria dos brasileiros vive à margem do acesso a museus, dentre estes uma parcela das 26 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência no Brasil, segundo dados do IBGE de 2000.

Logo, é importante a adoção de políticas museológicas para eliminar as barreiras impostas pela sociedade, assegurando-lhes oportunidades de utilizar ao máximo as possibilidades criativas, artísticas e intelectuais, e o acesso às atividades culturais não somente para o próprio beneficio, mas também para enriquecimento da comunidade.

Deficiências podem surgir por distintas razões e, de diferentes maneiras levar à privação (RESOURCE: 2005). Entre contextos promotores de privação, destaca-se o difícil acesso aos bens culturais, a experiências de trabalho e à educação de alto nível. O consumo de práticas culturais favorece o exercício da cidadania e acesso aos bens, serviços e produtos oferecidos pela sociedade. Canclini (2005) cita estudo da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe- CEPAL para demonstrar que o acesso segmentado e desigual às indústrias culturais, sobretudo aos bens que promovem a informação atualizada alarga “las distancias en el acceso a la información oportuna y en el desarrollo de las facultades adaptativas que permiten mayores posibilidades de desarrollo personal, generando así menores posibilidades de integración socioeconómica efectiva”

O projeto “Acesso”, do Memorial da Cultura Cearense, museu do Centro Cultural Dragão do Mar, organização social vinculada ao Governo do Estado do Ceará, tem a missão de possibilitar o acesso aos bens culturais, buscando propiciar às pessoas com deficiência circular e compartilhar os espaços museológicos, participar e opinar, criar e expressar-se artística e culturalmente, tornando significativas e efetivas memórias e experiências sociais.

Ao longo dos anos implantou o projeto Ateliê Experimental, residência artística entre artistas e grupos com deficiência, favorecendo a formação e criação artística; o Observatório de Museus e Espaços Culturais Acessíveis, programa de estudos, pesquisa e serviços permanentes sobre acessibilidade aos museus; além de programas de exposições acessíveis, e de orientação e mobilidade, BRAILLE e LIBRAS.

Como atividade integrante do Observatório de Museus e Espaços Culturais Acessíveis, o seminário Os sentidos da arte: pesquisas e práticas de acessibilidade em museus e educação foi um primeiro resultado da pesquisa Perfil –Opinião do público visitante com deficiência visual, iniciada em 2009 com o objetivo de identificar situações e contextos promotores do acesso aos museus, em parceria com o Observatório de Museus e Centros Culturais – OMCC, Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz e Instituto Brasileiro de Museus – Ibram.

Em entrevistas com grupos focais, os diálogos sobre arte, museus, educação, fruição e acessibilidade são frequentes, suscitando o desejo de expansão do conhecimento nesse campo específico. O seminário buscou, portanto, atender às expectativas do grupo, proporcionando-lhes o debate reflexivo com renomados palestrantes acerca das distintas vias de educação, comunicação, apreciação e integração que o museu pode oferecer.

Além das palestras e oficinas, o encontro apresentou mostra de fotografias com relevo de autoria de Jaquelina Rolim, fotógrafa cearense com deficiência visual; oficina de Contação de Histórias em LIBRAS; apresentações artísticas do Laboratório de Inclusão da Secretaria do Trabalho Desenvolvimento Social – STDS. O evento contou com importantes parcerias Associação dos Cegos do Estado do Ceará – ACEC, Sociedade de Assistência aos Cegos – SAC, Instituto dos Cegos, e da Comissão de Políticas Públicas para Pessoas com Deficiência da Prefeitura de Fortaleza – COPEDEF.

Impressões e percepções

“Vi que o cego tem a possibilidade de se encontrar nesse mundo da arte.”

Revelar a voz de sujeitos envolvidos, dando-lhes a oportunidade de expressar pontos de vistas e descrever experiências subjetivas vivenciadas, possibilita compreender e avaliar o quão pertinente foi realizar o seminário crítico, destinado ao público com deficiência visual.

Os autores dessas percepções foram mulheres e homens com deficiência visual e auditiva, com idade entre 18 e 70 anos, e profissões variadas.

“O seminário acrescentou e continuará acrescentando em nossa vida motivações para continuarmos a querer ‘estar integrados na arte’, pois não se imaginava que um cego pudesse fotografar, desenhar, ou ainda ‘fazer arte em cerâmica’, coisa que ficou provada e comprovada nesse Seminário com a ajuda dos palestrantes ‘competentes e conhecedores da arte’.

Relatos de um novo olhar sobre o uso da fotografia foram abundantes na experiência sob a orientação da fotógrafa e professora doutora da Universidade de Londrina, Fernanda Magalhães. Trinta participantes com deficiência visual, professores e mediadores de museus reunidos, descobriram imagens de si e do outro, reveladas em falas, gestos, sons, movimentos e perfomances.

“Eu sempre gostei de arte, de visitar museu, desenhar, pintar, fotografar. Apreciei as oficinas porque pude resgatar a habilidade e o encanto pelo mundo da arte. A oficina de multissensorialidade ativou muito os sentidos. Trabalhando estes aspectos de forma precisa e reativando os vários sentidos: tátil, auditivo, olfato.”

A palestra e oficina sobre a acessibilidade e mediação com materiais multissensoriais, ministradas pelo artista visual e doutor pela Universidade de São Paulo – USP- Alfonso Ballestero, trouxeram informações oportunas e momentos lúdicos para os participantes. A maioria ressaltou a riqueza dos recursos de acessibilidade a obras de artes antes consideradas inacessíveis ao público com deficiência visual, trazendo igualmente informações oportunas sobre o potencial multissensorial que espaços e acervos museológicos guardam em si.

“A oficina de cerâmica fez-se com uma turma inclusiva de videntes, cegos, baixa visão e eu, surda. Fiquei muito emocionada em poder sentir as peças produzidas apenas pelo tato, já que a professora pediu que fizéssemos a oficina de olhos vendados, nós videntes. Na oficina percebi que é muito difícil a comunicação de uma pessoa Surda-cega. Precisaria aprender a língua de sinais tátil e não apenas a Libras da qual eu sou usuária.”

Na experiência com Cláudia Zanata, artista visual e professora doutora da Universidade de Rio Grande do Sul, a palestra sobre arte e inclusão, e a oficina de cerâmica fluiu em torno 50 participantes com deficiência visual, auditiva, professores, acompanhantes, educadores de museu, momentos que propiciaram uma valiosa experiência sensorial para um grupo diverso, criando situações de integração e construção coletiva.

A conferência sobre acessibilidade comunicacional no espaço museológico e a oficina sobre metodologias de apreciação de obras para usuários de museus com deficiência visual, apresentadas pelo professor doutor Franscisco Lima, da Universidade Federal de Pernambuco, suscitaram emoção e confiança entre os participantes.

“Ouvir o professor foi estímulo para que nós cegos possamos conquistar também o nosso espaço. Ele nos mostrou através de seu doutorado e cargo na universidade, que, independente de qualquer deficiência, o ser humano é capaz de superar e evoluir.

Para os profissionais de museus os ganhos foram relacionados à aprendizagem de metodologias inovadoras e eficazes para favorecer a acessibilidade e fruição no espaço museológico.

A transmissão das palestras foi planejada e executada por uma pessoa cega. O seminário foi transmitido por uma rádio virtual gerida por uma associação de cegos. A mediação de uma das palestras foi realizada por uma pessoa considerada com baixa visão. O credenciamento foi realizado em grande parte por deficientes cognitivos. A oficina de cerâmica contou com a participação de uma pessoa surda e intérprete. E, pergunta-se: o que tem tudo isso de tão extraordinário? Muitos diriam que absolutamente nada. Eu, no entanto, respondo: INCLUSÃO

A ausência de trabalhadores de museus e professores, importantes agentes multiplicadores do processo de democratização de acesso a museus, e a ínfima divulgação nos meios de comunicação, foram questões pontuadas pelos entrevistados como pontos a serem melhorados nos próximos eventos.

O seminário trouxe discussões e práticas positivas, boas ideias, incorporação de novos colaboradores e ampliação de conhecimentos de práticas museológicas, educativas e culturais que beneficiam, de forma positiva e efetiva, a comunidade com deficiência. Por fim, é sempre bom lembrar que o projeto “Acesso” é uma obra em construção. A cada momento, agrega novos desafios, novos parceiros, novas ideias, novas experiências, novos debates e reflexões, novas aprendizagens e conhecimentos, assim tecendo diálogo e interação na construção da política de acessibilidade.

Referências

BOURDIEU, Pierre; DARBEL, Alain. O amor pela arte: os museus de arte na Europa e seu público. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Zouk, 2003.

CANCLINI., Néstor Garcia. Diferentes,Desiguales y Desconectados Mapas de interculturalidad. Barcelona: Editorial Gedisa. Barcelona, 2006

JELIN, Elizabeth. Exclusión, Memorias y Luchas Políticas. In Mato Daniel(compilado). Cultura, política y sociedad. 1a Ed. Buenos Aires; Consejo Latinomaricano de Ciencias Sociales. CLASCLO.2005.

KOPTCKE, Luciana. “Os museus cariocas e seus visitantes: uma análise do perfil dos públicos dos museus do Rio de Janeiro e de Niterói”, In: Abreu, R.; Chagas, M. S.; Santos, M. S. (orgs.) Museus, Coleções e Patrimônios: narrativas polifônicas. Rio de Janeiro: Garamond, MinC/IPHAN/DEMU,2007.

LAHIRE, Bernard. A cultura dos indivíduos. Porto Alegre: Armed, 2006.

LAHIRE, Bernard. Retratoa sociológicos: disposições e variações individuais. – Porto Alegre: Artmed, 2004;

LUCERGA, Maria Asunción Garcia Lucerga. El acceso de las personas deficientes visuales al mundo de los museos. Madrid: Ed. Once, 1999.

RESOURCE: The Council for Museuns, Archives and Libraries; – São Paulo; Editora da Universidade de São Paulo; [Fundação] Vitae, 2005.

Como citar esse artigo [ISO 690/2010]:
Moreno Márcia 2010. A experiência do seminário “Os sentidos da arte: pesquisas e práticas de acessibilidade em museus” [online]. [visto em 03/ 12/ 2023]. Disponível em: https://adww.online/rbtv/a-experiencia-do-seminario-os-sentidos-da-arte-pesquisas-e-praticas-de-acessibilidade-em-museus/.
Revista Brasileira de Tradução Visual

Este artigo faz parte da edição de número volume: 5, nº 5 (2010).
Para conhecer a edição completa, acesse: https://adww.online/rbtv/rbtv-5-sumario.

Publicado por

  • Gerente do Memorial da Cultura Cearense- MCC; coordenadora do projeto “Acesso”- Núcleo de Mediação sócio-cultural; Centro Dragão do Mar, Arte e Cultura - CDMAC.View all posts by Márcia Moreno

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *